TROPA DE ELITE II
Posturas de políticos e da mídia não escapam da mira de Tropa de Elite 2
Quinze anos mais velho, o antes capitão e agora coronel Nascimento, interpretado por um Wagner Moura de leves mechas grisalhas, tem novos alvos na mira de sua arma. Em vez de traficantes e possíveis comparsas dos morros cariocas, o personagem de Tropa de Elite 2, que estreou na última sexta-feira em mais de 600 salas de cinema espalhadas pelo Brasil, dispara agora contra o próprio Estado. Com menos bordões que na primeira parte, mas em ritmo igualmente acelerado, a fita não economiza munição. Além de políticos inescrupulosos, a sociedade entra, novamente, na linha de tiro, assim como defensores de direitos humanos e a própria mídia.
Embora o personagem principal esteja engravatado em grande parte da produção, cenas de truculência, de tortura e de corrupção no dia a dia da polícia, dessa vez ainda mais criminosa, continuam presentes. A obra de José Padilha permanece carregada de conteúdos controversos que já atingiram de debates entre intelectuais a mesas de bares frequentadas por brasileiros. Para aprofundar mais a discussão, o Correio assistiu ao filme acompanhado de profissionais que lidam com o tema da segurança pública em Brasília e ouviu estudiosos da área de outras cidades, especialmente do Rio de Janeiro. Para todos, a produção tem o mérito de levantar reflexões na sociedade.
“É claro que há questões romanceadas, nem tudo ocorre daquela forma, mas entendo que a arte precisa simplificar a realidade às vezes. Diria que, só pelo fato de suscitar debates sobre segurança pública, o filme já tem uma enorme importância”, diz Cláudio Tusco, delegado federal e um dos coordenadores do Programa Nacional de Segurança com Cidadania (Pronasci), do Ministério da Justiça. Ex-secretário Nacional de Segurança Pública e um dos autores dos livros Elite da Tropa 1 e 2, Luiz Eduardo Soares acredita que a única influência do filme nas eleições presidenciais pode ser forçar os candidatos a apresentarem propostas concretas para área. “Até agora só ouvimos discursos retóricos e vazios”, critica.
Milícia e corrupção
"Deputado Fraga, metade dos seus colegas aqui nesta Casa deveria estar na cadeia"
Coronel Nascimento, ao discursar na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro.
O desabafo de um coronel que dedicou os últimos 21 anos de sua vida à atividade policial chega a ser comovente na tela, mas revela um intrincado jogo de corrupção dentro das diversas esferas do governo do Rio de janeiro. Apropriando-se de fatos reais, descortinados a partir de 2007, envolvendo policiais, deputados estaduais, vereadores e até o ex-chefe da Polícia Civil, Álvaro Lins, a fita de Padilha traz para o centro do debate o tema das milícias nas comunidades cariocas — perto da qual o tráfico de drogas se torna um desafio menor. “Não há dúvidas, a milícia é o pior problema da segurança pública, porque se incorpora, de fato, ao Estado, representa o crime organizado literalmente”, diz Reinaldo Gomes, gestor em segurança que coordenou a área de políticas preventivas do Ministério da Justiça.
De acordo com Max Maciel, coordenador da Central Única de Favelas (Cufa) no Distrito Federal, a pior barbaridade associada à atuação de milícias é a exploração da comunidade que se sente tão ou mais acuada em relação aos traficantes. “Em outras palavras, temos o Estado usurpando as pessoas de variadas formas”, destaca o militante. No Rio de Janeiro, a própria prefeitura já chegou a mapear cerca de 100 comunidades chefiadas pelas milícias. Apesar do desbaratamento de alguns grupos, sobretudo depois da CPI das Milícias, tocada pela Assembleia Legislativa do Rio em 2008, o problema continua atormentando a vida dos moradores de favelas cariocas. Mais de 500 milicianos já foram presos de lá para cá, incluindo parlamentares, policiais e bombeiros.
A Liga da Justiça tornou-se a milícia mais conhecida no país por ter, em sua formação, o deputado estadual Natalino Guimarães (DEM) e o irmão, o vereador Jerominho (PMDB), ambos presos. O grupo atuava na área de Campo Grande, Zona Oeste do Rio, explorando serviços clandestinos de segurança, transporte alternativo, distribuição de gás, água, grilagem de terras e venda de sinal de TV a cabo, o famoso gatonet. As investigações estimaram que a Liga da Justiça arrecadava mensalmente algo em torno de R$ 2 milhões. A imagem do casal Garotinho sofreu um abalo na época devido a fortes indícios de ligação dele com os grupos, assim como o prefeito Eduardo Paes, criticado por elogiar publicamente a atuação de milicianos. “O Rio viveu uma situação perversa. De um lado, a dominação dos espaços pelo criminosos e, de outro, autoridades importantes vendo tudo de forma positiva”, lamenta Luiz Eduardo Soares, antropólogo e ex-secretário nacional de Segurança Pública.
Extensão nacional
"O que você acha que sustenta tudo isso?"
Questiona o coronel Nascimento, com a lente mirada para o Congresso Nacional.
Fotografia restrita ao Rio de Janeiro ou um alerta sobre a corrupção arraigada na máquina pública que corrói a segurança em todo o país? A resposta é tão cheia de idas e vindas que evidencia a divisão de opinião entre especialistas no tema. Para Luiz Eduardo Soares, o problema é muito maior. “Os fatos ali narrados encontram-se presentes nas instituições nacionais. Há um deslocamento para o Brasil nas cenas finais, com as imagens de Brasília”, afirma o antropólogo e autor dos livros que inspiraram os filmes.
Ex-coordenador da área de políticas preventivas do Ministério da Justiça, Reinaldo Gomes acredita serem mais específicos do Rio os problemas apresentados no Tropa de Elite 2. “A segurança pública não é assim no resto do país, porque em nenhum local você tem o nível de conflito bélico nem o nível de contaminação dos agentes do Estado.” Para Max Maciel, que coordena a Cufa no DF, os interesses pessoais que comprometem a segurança da população vão além do político que faz fortuna e se perpetua no poder por meio das milícias. “Está também naqueles que são financiados por indústrias de armas e, por isso, o Estatuto do Desarmamento não é implementado. É aprovar ou não aprovar leis que reverberam lá na ponta, no dia a dia do cidadão”, afirma.
Cláudio Tusco, delegado da Polícia Federal e um dos coordenadores do Pronasci, concorda. Para ele, os direitos do cidadão a segurança são igualmente roubados por outras atitudes corruptas que podem ocorrer em diversas esferas. “Fomos informados, por exemplo, que no Vale do Amanhecer, perto de Brasília, a empresa de ônibus, concessionária do Estado, não passa onde deveria. Quem garante que não há um fiscal sendo subornado ou um secretário de transporte fazendo vista grossa? É uma situação que culmina em insegurança para a população à medida que a obriga a caminhar mais para pegar a condução, chegar mais tarde em casa”, explica Tusco.
A lógica das milícias, por abranger a vida da população dominada em quase todas as suas vertentes, desrespeita importantes componentes da segurança pública, destaca Gomes. Para o gestor na área, a apropriação de serviços, por exemplo, gera inseguranças jurídica, social e econômica. “Imagine que, de um dia para o outro, você que vendia gás naquela comunidade não pode mais vender porque a milícia não deixa”, lamenta Gomes. Ele cita as 12 Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) implantadas no Rio de Janeiro como um modelo positivo de combate à violência.
Embora o filme não aborde a política, o diretor José Padilha já se posicionou claramente favorável, mas apenas como um primeiro passo.
O método da polícia comunitária, que é a essência da UPP, só funciona se houver entrosamento com outras áreas, diz Gomes. Para Sandra Carvalho, diretora da ONG Justiça Global, que lida com o tema da segurança pública no Rio, a UPP precisa ser analisada com cuidado. “Hoje, você não tem mais tiro. Em compensação, existe um vigilantismo que media todas as relações sociais daqueles grupos, até as culturais, como a proibição do baile funk”, afirma.
Embora o personagem principal esteja engravatado em grande parte da produção, cenas de truculência, de tortura e de corrupção no dia a dia da polícia, dessa vez ainda mais criminosa, continuam presentes. A obra de José Padilha permanece carregada de conteúdos controversos que já atingiram de debates entre intelectuais a mesas de bares frequentadas por brasileiros. Para aprofundar mais a discussão, o Correio assistiu ao filme acompanhado de profissionais que lidam com o tema da segurança pública em Brasília e ouviu estudiosos da área de outras cidades, especialmente do Rio de Janeiro. Para todos, a produção tem o mérito de levantar reflexões na sociedade.
“É claro que há questões romanceadas, nem tudo ocorre daquela forma, mas entendo que a arte precisa simplificar a realidade às vezes. Diria que, só pelo fato de suscitar debates sobre segurança pública, o filme já tem uma enorme importância”, diz Cláudio Tusco, delegado federal e um dos coordenadores do Programa Nacional de Segurança com Cidadania (Pronasci), do Ministério da Justiça. Ex-secretário Nacional de Segurança Pública e um dos autores dos livros Elite da Tropa 1 e 2, Luiz Eduardo Soares acredita que a única influência do filme nas eleições presidenciais pode ser forçar os candidatos a apresentarem propostas concretas para área. “Até agora só ouvimos discursos retóricos e vazios”, critica.
Milícia e corrupção
"Deputado Fraga, metade dos seus colegas aqui nesta Casa deveria estar na cadeia"
Coronel Nascimento, ao discursar na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro.
O desabafo de um coronel que dedicou os últimos 21 anos de sua vida à atividade policial chega a ser comovente na tela, mas revela um intrincado jogo de corrupção dentro das diversas esferas do governo do Rio de janeiro. Apropriando-se de fatos reais, descortinados a partir de 2007, envolvendo policiais, deputados estaduais, vereadores e até o ex-chefe da Polícia Civil, Álvaro Lins, a fita de Padilha traz para o centro do debate o tema das milícias nas comunidades cariocas — perto da qual o tráfico de drogas se torna um desafio menor. “Não há dúvidas, a milícia é o pior problema da segurança pública, porque se incorpora, de fato, ao Estado, representa o crime organizado literalmente”, diz Reinaldo Gomes, gestor em segurança que coordenou a área de políticas preventivas do Ministério da Justiça.
De acordo com Max Maciel, coordenador da Central Única de Favelas (Cufa) no Distrito Federal, a pior barbaridade associada à atuação de milícias é a exploração da comunidade que se sente tão ou mais acuada em relação aos traficantes. “Em outras palavras, temos o Estado usurpando as pessoas de variadas formas”, destaca o militante. No Rio de Janeiro, a própria prefeitura já chegou a mapear cerca de 100 comunidades chefiadas pelas milícias. Apesar do desbaratamento de alguns grupos, sobretudo depois da CPI das Milícias, tocada pela Assembleia Legislativa do Rio em 2008, o problema continua atormentando a vida dos moradores de favelas cariocas. Mais de 500 milicianos já foram presos de lá para cá, incluindo parlamentares, policiais e bombeiros.
A Liga da Justiça tornou-se a milícia mais conhecida no país por ter, em sua formação, o deputado estadual Natalino Guimarães (DEM) e o irmão, o vereador Jerominho (PMDB), ambos presos. O grupo atuava na área de Campo Grande, Zona Oeste do Rio, explorando serviços clandestinos de segurança, transporte alternativo, distribuição de gás, água, grilagem de terras e venda de sinal de TV a cabo, o famoso gatonet. As investigações estimaram que a Liga da Justiça arrecadava mensalmente algo em torno de R$ 2 milhões. A imagem do casal Garotinho sofreu um abalo na época devido a fortes indícios de ligação dele com os grupos, assim como o prefeito Eduardo Paes, criticado por elogiar publicamente a atuação de milicianos. “O Rio viveu uma situação perversa. De um lado, a dominação dos espaços pelo criminosos e, de outro, autoridades importantes vendo tudo de forma positiva”, lamenta Luiz Eduardo Soares, antropólogo e ex-secretário nacional de Segurança Pública.
Extensão nacional
"O que você acha que sustenta tudo isso?"
Questiona o coronel Nascimento, com a lente mirada para o Congresso Nacional.
Fotografia restrita ao Rio de Janeiro ou um alerta sobre a corrupção arraigada na máquina pública que corrói a segurança em todo o país? A resposta é tão cheia de idas e vindas que evidencia a divisão de opinião entre especialistas no tema. Para Luiz Eduardo Soares, o problema é muito maior. “Os fatos ali narrados encontram-se presentes nas instituições nacionais. Há um deslocamento para o Brasil nas cenas finais, com as imagens de Brasília”, afirma o antropólogo e autor dos livros que inspiraram os filmes.
Ex-coordenador da área de políticas preventivas do Ministério da Justiça, Reinaldo Gomes acredita serem mais específicos do Rio os problemas apresentados no Tropa de Elite 2. “A segurança pública não é assim no resto do país, porque em nenhum local você tem o nível de conflito bélico nem o nível de contaminação dos agentes do Estado.” Para Max Maciel, que coordena a Cufa no DF, os interesses pessoais que comprometem a segurança da população vão além do político que faz fortuna e se perpetua no poder por meio das milícias. “Está também naqueles que são financiados por indústrias de armas e, por isso, o Estatuto do Desarmamento não é implementado. É aprovar ou não aprovar leis que reverberam lá na ponta, no dia a dia do cidadão”, afirma.
Cláudio Tusco, delegado da Polícia Federal e um dos coordenadores do Pronasci, concorda. Para ele, os direitos do cidadão a segurança são igualmente roubados por outras atitudes corruptas que podem ocorrer em diversas esferas. “Fomos informados, por exemplo, que no Vale do Amanhecer, perto de Brasília, a empresa de ônibus, concessionária do Estado, não passa onde deveria. Quem garante que não há um fiscal sendo subornado ou um secretário de transporte fazendo vista grossa? É uma situação que culmina em insegurança para a população à medida que a obriga a caminhar mais para pegar a condução, chegar mais tarde em casa”, explica Tusco.
A lógica das milícias, por abranger a vida da população dominada em quase todas as suas vertentes, desrespeita importantes componentes da segurança pública, destaca Gomes. Para o gestor na área, a apropriação de serviços, por exemplo, gera inseguranças jurídica, social e econômica. “Imagine que, de um dia para o outro, você que vendia gás naquela comunidade não pode mais vender porque a milícia não deixa”, lamenta Gomes. Ele cita as 12 Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) implantadas no Rio de Janeiro como um modelo positivo de combate à violência.
Embora o filme não aborde a política, o diretor José Padilha já se posicionou claramente favorável, mas apenas como um primeiro passo.
O método da polícia comunitária, que é a essência da UPP, só funciona se houver entrosamento com outras áreas, diz Gomes. Para Sandra Carvalho, diretora da ONG Justiça Global, que lida com o tema da segurança pública no Rio, a UPP precisa ser analisada com cuidado. “Hoje, você não tem mais tiro. Em compensação, existe um vigilantismo que media todas as relações sociais daqueles grupos, até as culturais, como a proibição do baile funk”, afirma.
Renaro Cardozo
Publicação: 11/10/2010 09:24
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